segunda-feira, 24 de maio de 2010

Quarta maior em eletrodomésticos, Lojas Cem está na contramão do setor

Empresa não quer fazer parte da consolidação, não está na internet, sequer tem empréstimo em banco - e está entre as mais lucrativas

O último ano foi especialmente agitado para o varejo nacional. Primeiro, a rede Pão de Açúcar comprou a carioca Ponto Frio. Depois, se associou à Casas Bahia (até o fechamento dessa edição, o acordo entre as empresas estava sendo rediscutido). Como reação a esses movimentos que colocaram a empresa de Abílio Diniz no topo do setor de eletroeletrônicos, as cadeias Insinuante e Ricardo Eletro anunciaram uma fusão há cerca de dois meses. Terceira colocada na nova configuração do setor, a Magazine Luiza já anunciou que pretende, por sua vez, fazer aquisições, abrir lojas em ritmo agressivo e, eventualmente, ir à bolsa.

No meio de tamanha euforia, é difícil não se surpreender com a postura da Lojas Cem, a quarta maior rede de varejo de eletroeletrônicos do País, com faturamento de R$ 1,6 bilhão. "Qualquer consultor vai dizer que o importante nesse negócio é o faturamento e o número de lojas. Mas, para nós, o importante mesmo é o lucro", diz Natale Dalla Vecchia, 73 anos, fundador e principal executivo da empresa.

Na contramão do setor, a Lojas Cem não quer ser vendida, não aceita propostas de fusão e muito menos analisa alvos para compra. Conforme o Estado apurou, a companhia já foi sondada por vários fundos de participações em empresas com a intenção de se tornar acionistas. Segundo fontes próximas à varejista, há cerca de dois meses, executivos do Itaú BBA visitaram a Lojas Cem para sondar a possibilidade de negócios com o Pão de Açúcar (procurados, o banco não se manifestou e o Grupo Pão de Açúcar informou que não procurou a Lojas Cem). O assédio não é de hoje. Cinco anos atrás, a mexicana Coppel, que tinha a intenção de se instalar no Brasil, se aproximou da rede (a empresa estrangeira acabou abrindo suas primeiras lojas no início do ano, em Curitiba). Repetida como mantra, a resposta para propostas desse tipo é sempre não.

A lógica por trás dessa posição é que, ao se juntar com outra rede, a Lojas Cem tornaria-se menos saudável financeiramente, já que assumiria as ineficiências alheias. De fato, perto de seus concorrentes, a Lojas Cem se destaca pela rentabilidade. A pedido da reportagem, a Felisoni Associados e o professor Claudio Felisoni de Angelo, presidente do conselho do Programa de Administração de Varejo (PROVAR) da FIA, compararam o balanço do ano passado da companhia com o desempenho de Ponto Frio, Magazine Luiza, Colombo e Pernambucanas (as empresas Casas Bahia, Insinuante e Ricardo Eletro não divulgam seus balanços). A conclusão foi que a Lojas Cem é a rede mais lucrativa e a menos endividada.

Números. Segundo o levantamento, a taxa de lucro operacional da companhia é de 8,2%, contra 5,6% do Magazine Luiza e -7,3% do Ponto Frio. A Lojas Cem tem apenas 27% de seu ativo financiado por terceiros, contra 88% do Magazine Luiza e 59% da Colombo, por exemplo. "Os porcentuais indicam que a Lojas Cem opera fundamentalmente com capital próprio, comportamento diferente do observado em outras empresas no mesmo mercado", diz o relatório.

A explicação para esses resultados está no conservadorismo extremo adotado na gestão da companhia. A Lojas Cem não tem nenhum empréstimo em banco. Ao contrário de seus concorrentes, a empresa não fez acordos com bancos para financiar os clientes. Na Lojas Cem, o crédito ao consumidor é concedido pela própria companhia. Não há sequer um setor estruturado de análise do perfil dos clientes, como de costume no varejo. O próprio gerente da loja se encarrega de aprovar ou não os pedidos de parcelamento. O principal critério é o histórico do cliente (80% das vendas são realizadas para consumidores que já compraram na rede no passado). "Como não pagamos juros para os bancos, podemos oferecer taxas mais baixas aos clientes", diz Cícero Della Vecchia, sócio da empresa.

Com sede em Salto, no interior de São Paulo, a Lojas Cem tem seu controle dividido em parte iguais entre quatro ramos da família Della Vecchia: os irmãos Natale, Cícero, Giácomo e o cunhado Roberto Benito (alegando questões de segurança, nenhum dos acionistas aceitou tirar foto para essa matéria). Os quatro ocupam cargos de diretoria - não há presidente na empresa - e dão expediente diariamente. Abaixo desse grupo estão os gerentes que trabalham na sede da companhia, todos com mais de 20 anos de casa. Mesmo os gerentes de loja são forjados sob a cultura da Lojas Cem e passam, obrigatoriamente, pela função de vendedor. "Se o melhor gerente da Casas Bahia quiser trabalhar aqui, terá de ser vendedor primeiro", diz Natale.

A Lojas Cem é a única entre os grandes varejistas que não vende pela internet. "Esse negócio exige uma estrutura própria e o volume de vendas ainda não compensa", diz Cícero. A empresa decidiu ficar de fora, ainda, de outra tendência do setor: a de usar as lojas como canal de vendas para produtos que vão além dos eletrodomésticos, como seguros e a garantia estendida. "Ainda temos lucro com o negócio principal, não precisamos desses serviços."

Às estratégias de negócios peculiares, soma-se o modelo de gestão espartano. Os quatro acionistas da empresa dividem a mesma sala sem secretária. Cada um recebe o salário de R$ 5 mil. Em 2000 - cinquenta anos após a fundação da empresa - decidiu-se começar a distribuir parte do lucro da operação, no caso 6%. No ano passado, esse porcentual resultou em cerca de R$ 1 milhão para cada sócio. Os donos da Lojas Cem recebem algo semelhante aos diretores dos concorrentes. "Esse é um valor compatível com a remuneração de altos executivos de grandes varejistas", diz Leonardo Salgado, da consultoria Hay Group. "Para o nosso estilo de vida, isso é muito", diz Natale. Nenhum dos integrantes da família Dalla Vecchia tem barco, jatinho ou casa em Miami (os clássicos da ascensão ao clube dos ricos).

Desafios. Ao fazer exatamente o oposto de um setor inteiro, a Lojas Cem não escapa, obviamente, de críticas. "Apesar do lucro alto e do endividamento baixo, a empresa não está em uma situação confortável", diz Felisoni. "A pouca alavancagem é um limitador para o crescimento." A Lojas Cem nunca teve a intenção de figurar entre as maiores empresas do setor. Mesmo assim, crescer - a ponto de, pelo menos, acompanhar os concorrentes - não é uma coisa da qual se pode fugir nesse setor.

"É impossível se proteger das consequências da consolidação. Quando as empresas se fundem, passam a ter melhores condições de negociar com os fornecedores e podem praticar preços mais baixos, roubando vendas das empresas menores", diz Renato Prado, analista de varejo da Fator Corretora. "Além disso, empresas fortalecidas podem, propositalmente, traçar estratégias de mercado que asfixiem seus concorrentes."

Os planos de crescimento da Lojas Cem são modestos na comparação com os concorrentes. Hoje, a empresa tem 180 lojas e só atua em um raio de 600 quilômetros desde o centro de distribuição, que fica em Salto. Preferencialmente, as lojas são instaladas em cidades do interior dos Estados do Paraná, Rio de Janeiro, São Paulo e Minas Gerais. O limite desse centro de distribuição, segundo os cálculos dos acionistas, será atingido com 350 lojas. Até que a empresa chegue a esse ponto devem-se passar dez anos, estimam. Um pouco antes disso, em sete anos, o faturamento deve dobrar. A Máquina de Vendas, empresa resultante da fusão entre Insinuante e Ricardo Eletro, por exemplo, espera dobrar sua receita em apenas quatro anos.

Até agora, a Lojas Cem tem conseguido condições comparáveis às de concorrentes maiores nas negociações com fornecedores graças a duas estratégias: o pagamento em prazos curtos e o estilo linha dura. Para conseguir descontos, a empresa usa como arma o pagamento rápido. "Não negociamos prazo como os demais. Pagamos logo e queremos o melhor preço", diz Cícero. Ao mesmo tempo, a empresa faz pesquisas quinzenais para descobrir quais são os preços praticados pelo resto do setor. Se os números demonstrarem condições de compra muito mais favoráveis para os concorrentes, o fornecedor é duramente cobrado.

Um exemplo extremo dessa situação foi a interrupção de três anos no relacionamento com a Electrolux, segunda maior fabricante de eletrodomésticos do País. Segundo executivos próximos, a Lojas Cem só voltou a comprar da empresa europeia no início de 2010, depois que as condições de negociação tornaram-se mais favoráveis. Com o aumento na distância entre a empresa e os concorrentes, porém, a pergunta é por quanto tempo esse tipo de estratégia terá o mesmo efeito. "Acreditamos que a própria indústria não quer ter apenas poucos compradores gigantes", acredita Cícero.

Sucessão. Por fim, a Lojas Cem ainda precisa enfrentar um desafio iminente: a sucessão no controle. Seguindo mais uma vez uma lógica particular, a empresa não pretende profissionalizar a gestão. Um grupo de sete membros da segunda geração da família Dalla Vecchia já trabalha junto com os quatro acionistas. A intenção é que a passagem de bastão do primeiro para o segundo grupo ocorra de forma gradual, sem sobressaltos. "O problema é que não dá para garantir que o modelo que funcionou para uma geração servirá para outra", diz Wagner Teixeira, sócio e diretor-geral da consultoria Höft-Bernhoeft & Teixeira.

Pelo menos por enquanto, a segunda geração não pretende alterar drasticamente os rumos da empresa. "Nossa tarefa será manter o que foi feito até aqui e dar continuidade ao crescimento sustentável", diz Weber Dalla Vecchia, um dos representantes do grupo. Resta saber agora se a estratégia que trouxe a empresa até aqui é a mesma que a fará prosperar daqui para a frente.


A Lojas Cem em números

Com a consolidação do setor, que se acelerou no final do ano passado, a empresa se tornou a quarta maior rede de eletroeletrônicos do País

R$ 1,6 bilhão foi o faturamento da rede no ano passado

80% é a porcentagem de clientes que já fizeram compras na Lojas Cem mais de uma vez

8,2% foi a taxa de lucro operacional registrada pela empresa em 2009

180 é o número de lojas da empresa nos Estados de São Paulo, Minais Gerais, Paraná e Rio de Janeiro

Fonte: O Estado de S. Paulo