quarta-feira, 9 de fevereiro de 2011

Ritualização do consumo: a casa, a rua e o shopping

por João Batista Ferreira

O mundo do pensamento é distante do mundo dos fatos, assim como existe uma cidade ideal distante da cidade real. Tendo mudado o sistema geral de produção, mudou também a cidade; o que era uma concepção artística de seus espaços públicos e de seus espaços privados. A cidade, hoje, é um produto industrial. Seus espaços obedecem a uma lógica envidraçada que privilegia o trabalho intelectual massificado.

Em sociedades emergentes, vemos agora ex-colônias monárquicas, como o Brasil, recentemente tutelado com mão de ferro, abrindo-se nas circunstâncias que conspiram para a possibilidade de um desenvolvimento econômico “nunca antes visto neste país”. Congestionadas cada vez mais, as cidades, experimentando novos espaços de circulação, caminham na contramão do frenesi aspiracional de consumo de seus cidadãos.

Os espaços tradicionais não são mais suficientes para a sensação de pertencer ao progresso, ao mundo globalizado, solicitando acesso aos benefícios que, de um consumo experiencial, só nos últimos tempos pôde ocorrer. Essa emergência carrega consigo o sucesso das indústrias e das redes de varejo, amplificando os ganhos de capital.

Urge que sejam implementados canais adequados para escoar a produção e a experiência de consumo desejada pela população, que enriqueçam o entorno do cotidiano. O shopping center cumpre, em grande parte, como uma extensão deste “bairro ideal”, para além das calçadas esburacadas, território inseguro, que alimenta o imaginário urbano, como um bairro de uma “cidade ideal”: A casa, a rua e o bairro descomprimido, lindo, seguro, conveniente, com alimentação, cinema, diversidade das lojas (mix), estacionamento, paquera, festa, consumo… tráfego e retorno!

A casa, a rua e o shopping

“A forma é o resultado de um processo cujo ponto de partida não é a própria forma” (Argan, A história da arte como história da cidade – 1984).

O shopping center tal com o conhecemos hoje é uma obra da cidade, uma extensão do “Market Platz”, da secular Praça do Mercado, onde escoava a produção, local dos rituais de socialização.

Podemos entender que já há muito que esses espaços de escoamento e interação social, base da cultura, vêm ampliando-se para espaços coletivos privatizados – shopping centers, pois, “no Brasil, a casa e a rua não representam apenas espaços geográficos, mas são acima de tudo entidades morais, esferas de ação social.” (A casa & a rua – DaMatta – 1984 ).

O ICSC – International Council of Shopping Centers – a maior instituição do mundo que representa os negócios de shopping center, com sede em Nova York, realiza todos os anos um evento onde a indústria de shopping encontra-se com os seus ocupantes lojistas. O nome deste evento? ReCon – Real State Conference, que nada mais é do que a indústria imobiliária organizada cientificamente para construção desses espaços urbanos.

O shopping center, tal como o conhecemos hoje, tem sua origem no boom industrial-militar do pós-guerra americano. Explosão da indústria e dos produtos funcionais para a emergente classe média que saía do esforço da empreitada aliada do segundo conflito mundial. Os empórios de departamentos, que supriam as famílias, e os negócios varejistas em geral, precisavam encontrar um ambiente adequado para criar destino de compra, numa cumplicidade mercadológica com a mídia, que explodia através do rádio e da recente televisão.

Estamos nos idos dos anos 50 e o primeiro shopping “fechado” dos Estados Unidos – Southdale – abriu em Edina, Minnesota em 1956.

No Brasil, nos tempos da banda branca, a emergência paulistana dá seus primeiros passos com a iniciativa de um grupo de investidores visionários, e apenas 10 anos depois dos americanos, dá partida na construção do que hoje é o Shopping Iguatemi em São Paulo, templo do desejo premium de consumo. O resto é história recente.

O Brasil da pós-modernidade, oásis no deserto da crise global dos mercados, ainda segue sua vocação de um país de grandes contrastes, de problemas continentais. Embora sejamos o 9o PIB do planeta, somos o 73o em IDH, o 89o em desigualdade social, o 102o em média de anos de estudo da população, atrás do México, da Líbia de Kadhafi e do Peru, em dados recém-publicados pela ONU. Tudo indica que seremos a 7ª economia do mundo em 2011 (Folha de S. Paulo, 7/11/2010 – Entrevista com Michel Maffesoli).

Aqui convivem o estado da arte desses centros comerciais, extremamente sofisticados, com um ainda prevalente e pujante comércio de rua tradicional, característica de países em desenvolvimento. Assim, para exemplificar, na Turquia, em Istambul, desde 1461 encontra-se o Grand Bazar, um dos maiores centros comerciais do mundo, com 60 ruas, 5.000 lojas e entre 250 e 400 mil consumidores diários, e uma indústria de shopping centers das mais sofisticadas.

Em São Paulo, o nosso Grand Bazar é a 25 de Março, que foi batizada, em 1865, como o maior centro comercial a céu aberto da América Latina, com cerca de 1.400 lojas cadastradas e 400 mil frequentadores por dia – tem de tudo para todos.
No Brasil as classes A e B representam 66% do consumo dos shopping centers. O valor das vendas estimado para 2010 é de R$ 87 bilhões, representando um crescimento de 50% em relação a 2007, ano das grandes consolidações do segmento. A entrada de grandes grupos profissionalizados no negócio de shopping centers promoveu um choque de governança, pois esses investidores buscam recursos nas bolsas de valores e têm de dar conta pública de resultados.

Essa onda profissional trouxe para o mercado uma compreensão clara de que o shopping atrai, os lojistas seduzem e os consumidores escolhem o que converter em consumo. Entretanto, esses centros deixaram de ser apenas orientados ao consumo, pois os planejadores profissionais sabem que, para haver conversão, é preciso tráfego, serviços, é necessário, por último, que sejam um fato social para a zona de captação primária. Assim, são concorrentes do imaginário de “bairro”, numa ponte direta com a “casa e a rua”.

Consumo e diversidade de ofertas no século XXI

Com a grande produção de bens e serviços nessa arrancada de nosso século, com a diversidade quase infinita de estímulos de consumo no cotidiano e, mais ainda, pela simplificação ordinária desse mesmo cotidiano que os shopping centers representam, temos um risco iminente. Trata-se da mesmice, da monotonia desses espaços. Muito embora o planejamento siga uma ordenação de ideias mais ou menos iguais para uma determinada comunidade de influência primária, as empresas também estão se especializando em relação aos seus públicos. Assim, vemos repetir-se as mesmas ofertas de lojas em diferentes shoppings, e podemos afirmar que o projeto segue mais ou menos o mesmo script.

Por outro lado, alguns shopping centers realmente destacam-se de seus congêneres. Seja porque diferenciam o espaço, seja porque transformam-se em verdadeiros “bairros”, envolvidos por edifícios de escritórios e de conjuntos residenciais de acordo com o seu público. Um bom exemplo disto é o Shopping Cidade Jardim em São Paulo, isolado, que projetou um conjunto de edifícios residenciais e de escritórios, extremamente sofisticados no entorno do “mall”. Outro exemplo fantástico é o “Cidade Center Norte” que, de um brejão, construiu um centro de compras, com estacionamento gratuito, que até hoje é um dos que mais vendem, por área, no Brasil.

O papel dos shopping centers como vanguarda do consumo

A realidade predominante é a vida cotidiana, mas há também outras como o sonho e a imaginação. É nesta vida cotidiana que os indivíduos participam com outros, numa intersubjetividade. Estou sozinho no mundo de meus sonhos, mas sei que o mundo da vida cotidiana é tão real para os outros como para mim mesmo.

“É possível abordar o shopping como um sistema amplo de legitimação do universo que proporciona ao seu usuário condições para integrar significados ligados a processos institucionais díspares em um todo dotado de sentido. Lá ocorrem as transações de valores e base das relações sociais”. (Sérgio Lana, O homem e o shopping – tese de doutorado UFMG – 2008).

O cotidiano dos indivíduos está mudando numa velocidade vertiginosa neste século XXI. Cada vez mais a imaginação avança para territórios complexos e pouco compreendidos na razão de sua existência.

A internet, por exemplo, facilita a interação, mas provoca um “quantum” avassalador de mistério de “como é possível isto acontecer?”, fora do alcance do homem comum. Entretanto, é lá que ele expande seus conhecimentos sobre produtos e serviços que o ligam ao universo do cotidiano. Celulares smartphone desejáveis, apresentados pela Apple, fabricados na China e vendidos em todo o mundo, construindo assim um simbolismo que, em países emergentes como o Brasil, só pode ser encontrado nos “shopping centers”, pois é lá que se encontra o meu “mundo ideal”, a rua esterilizada, o meu “bairro”.

O mercado imobiliário busca apropriar-se desse imaginário, desse ambiente onírico, presente em todos nós. No entanto, devido à sua determinação de buscar a transação de valores, de fazer crescer o faturamento dos lojistas, os projetos de shopping centers têm uma limitação intransponível: tudo acaba na cancela do estacionamento. Mas está fadado ao sucesso, pois como dizia o mestre Roland Corbisier: “estamos dedicados à vida privada, pois estamos privados da vida pública”. As ruas, as calçadas, o trânsito e a violência deixam rastros perversos no cotidiano.